Fernanda Montenegro relembra suas origens e é aclamada após apresentação em Madureira
Atriz apresentou 'Nelson Rodrigues por ele mesmo', neste sábado, na Arena Carioca Fernando Torres, que completa dez anos. Equipamento cultural leva o nome do diretor, dramaturgo e ator com quem estrela foi casada por seis décadas Fernanda Montenegro era esperada por mais de 350 pessoas na Arena Carioca Fernando Torres, neste sábado, às 19h. Nem a previsão de chegada de frente fria e o vendaval que atingiu o Rio abalaram a estrela de quase 94 anos que, pontual, cumprimentou, com emoção, a plateia diversa que se identificou com o discurso da ex-professora nascida em Campinho, na Zona Norte do Rio. O teatro do Parque Madureira, Zona Norte do Rio, tem um nome familiar: o do ator, dramaturgo e diretor com quem ela foi casada por mais de 60 anos. Como forma de presentear ele e a arte popular, o evento foi gratuito à população — como entrada, foi pedido de cada um doação de 1kg de alimento — e faz parte das comemorações pelos dez anos de existência do espaço cultural. A estrela, inclusive, abriu mão do cachê,
— São dez anos deste espaço cultural e também deste espaço de comunhão do bairro. E são dez anos que eu faço esse texto. Engraçado… De repente, voltei aqui em Madureira. Sou filha dessa região. Nasci na Rua Alaíde, saindo ali na praça… Fiz meu primário na Pinto Telles. Nesse bairro, vi os anos 30 com muita chácara, árvores, um bonde cruzando. Voltar aqui hoje é muito bonito. Não é a primeira vez… Essa área tem o nome do Fernando. São anos que ele se foi mas continua vivo — disse a atriz, emocionada. Antes da leitura dramatizada, Fernanda recordou que a peça ganhou este formato “por acaso” e se tornou bem-sucedida. A confirmação veio da plateia, que se divertiu com o sarcasmo de Nelson Rodrigues temperado pela atuação da estrela e reagiu com sons de acolhimento aos trechos em que foram lembradas as memórias rodrigueanas de adolescência e vida adulta. - Fiz um trabalho sobre o livro “Nelson Rodrigues por ele mesmo”, organizado pela Sonia Rodrigues. Com a morte do Nelson, ela juntou com outras coisas. Ele é um homem imenso. Memorialista extraordinário, cronista extraordinário, teatrólogo. Tudo o que ele fez é um somatório brasileiro no sentido de inalcançável. Nessa tomada do livro da Sonia, fiz um apanhado de mais de anos trabalhando. Chamei dois colegas. Eu ia dirigir mas por ene razões a coisa não saiu. Tínhamos um pequeno investimento, quisemos devolver, mas disseram que eu desse um jeito. Li para poder constar que eu trabalhei e paguei com meu trabalho o investimento em torno de um espetáculo que teria cenário, ator… Faço isso há dez anos. Foi por acaso mas deu certo - finalizou a atriz, antes do agradecimento inicial, no palco.
A arena que leva o nome do pai de seus dois filhos, o cineasta Cláudio Torres e a atriz e escritora Fernanda Torres, já recebeu, desde 2012, centenas de peças de teatro, performances e shows musicais. E a grande dama é "Suburbana de corpo e alma", como declarou anos antes de voltar à arena. Por isso, ela comentou com o público sobre seu passado nas redondezas. Fila de espera
Às 18h, a fila de espera para o espetáculo dava volta e circundava toda a parte exterior da arena. Assim que as portas se abriram, os primeiros pingos de chuva começaram a cair. E teve gente que chegou cinco horas antes para pegar o melhor lugar.
- Soube há alguns dias e me programei para vir. Cheguei às 14h. É inusitado ela estar no Parque Madureira, com uma proposta social e se apresentando para um público diferente. Eu quis ver de perto - diz Thaise Cardoso, 29 anos , moradora de Cordovil, primeira da fila.
A estrela também chegou cedo; ela estava ali horas antes das 18h com a equipe da Conspiração Filmes, que roda um documentário. Carmen Mello, agente, preservou a artista para que ela se concentrasse para o espetáculo. Fernanda é uma operária da arte. - Ela veio ensaiando no carro, chegou à arena algumas horas antes, passou o texto e esperou o público chegar - detalhou Carmen.
Dia do artista de teatro
Primeira da fila de prioridades, a aposentada Vera Lucia Figueiredo, de 81 anos, pegou algumas conduções para ver o espetáculo sobre Nelson Rodrigues estrelado pela brasileira já indicada ao Oscar (em 1999, por "Central do Brasil"):
- Tenho mais de 80 anos. Acompanhei muitos trabalhos dela. À memória, vem as novelas da televisão. E “Central do Brasil” foi bem marcante. Sei que ela era professora, teve uma vida como a de muitos de nós. Para estar aqui, peguei ônibus, BRT e fiz uma boa caminhada. Vai valer a pena.
Casualidade ou não, este sábado também é Dia do Artista de Teatro, arte da qual a grande dama da dramaturgia brasileira é devota desde os tempos anteriores a 1951, ano em que iniciou sua carreira na televisão como contratada da TV Tupi.
Com a leitura dramatizada que apresentou neste sábado, ela lotou teatros brasileiros de 2016 a 2020 e em 2022. A peça é baseada no livro homônimo organizado pela filha do autor, Sônia Rodrigues.
Em entrevista publicada na última sexta-feira no Segundo Caderno, a carioca de Campinho, também na Zona Norte do Rio, lembrou personagens com vivências parecidas a de milhares de cariocas. Ela explicou que figuras como Zulmira, a protagonista rodrigueana de “A falecida” (1965), que vive o cotidiano suburbano; Dora, que lida com mazelas da "Central do Brasil" (filme de 1998); e Dona Picucha, da série vencedora do Emmy "Amor de mãe" (2020), marcaram sua carreira: — O acaso me levou às circunstâncias de ter sido premiada com personagens que retratam os conflitos éticos e morais por que passam as pessoas no subúrbio. Mas, na verdade, Zulmira, Dora e Picucha carnificam o que aflige a todos, independentemente de origem socioeconômica.
- Imortal da Academia Brasileira de Letras
Nelson Rodrigues, escritor, jornalista e dramaturgo homenageado por Fernanda Montenegro na leitura dramatizada deste sábado, foi citado por ela na cerimônia de posse diante de outros Imortais. O memorável escritor, aliás, nasceu no dia 23 de agosto, dia próximo à apresentação que deixou o público carioca boquiaberto com o drama encenado pela atriz.